agosto 07, 2011

O jogo do encanto

image

Marido é que nem empresa, basta manter a velocidade para estar ultrapassado. Então, tem que ser criativo, exercitar aquele dom exclusivo da criatura humana, a imaginação, e gerar todo dia fatos que lhe permita manter a posição. A rotina é o adversário a ser combatido.

Antônio Carlos tem habilidade natural na área. Titular absoluto, o homem é uma usina na arte de produzir anticorpos para o vírus destruidor da mesmice. Por isso Maria da Graça o ama. Antônio Carlos faz da sua casa um campo onde a plateia – mulher e filho - é cativada o tempo todo. Chamar encantar de arte não é chute, é preciso pôr a imaginação a rolar para fazer com que as expectativas sejam alvejadas pelo inesperado com a frequência necessária. Quando Quintana disse que as coisas devem ser dosadas com suspense para impressionar e encantar, parecia estar falando de Antônio Carlos.

Uma noite, Maria da Graça fez o filho dormir e foi assistir a novela das nove. Pelo chio do chuveiro percebia o marido no banho. No segundo bloco, ela notou que o som tinha parado, calculou o tempo de enxugamento mais o espaço para vestir o pijama e concluiu que o maridão estava demorando. Lembrou que às vezes ele fazia assim para ela ir atrás. Aguardaria o comercial.

Ele veio logo – o intervalo, e no silêncio parabolical que se seguiu, Maria da Graça levantou-se do sofá, virou-se em direção ao corredor e teve uma sensação estranha quando seu cérebro avisou que não entendia o que seus olhos viam.

Antônio Carlos estava parado, de pé, vestido apenas com um par de pantufas bem fofas, daquelas peludas com cara da panda, línguas vermelhas aparecendo e orelhas enormes incompatíveis. No primeiro momento, Maria da Graça achou que o marido não estava bem. Um lampejo que foi bruscamente substituído por um acesso de riso que a fez jogar-se de costas no sofá. Não conseguiu mais parar de rir, nem identificar direito o que era mais esquisito, se a pantufona de boca aberta com meio palmo de língua vermelha ou a própria imagem pelada com o cabelo encharcado estampada no vão da porta.

Ela ficou encantada. Ainda mais quando soube que a brincadeira do marido teve um custo extra. No Bistek cheio, sabendo que sua aquisição tinha algo de ridículo, Antônio Carlos quis ser discreto. Foi muito chato. Se quisesse chamar atenção não teria escolhido melhor momento. Murphy explica. A fila era enorme atrás dele e o sensor não leu o código de barras. A caixa abriu e revirou o pacote à cata do preço, e nada. Na medida em que Antônio Carlos ficava impaciente o pessoal da fila se interessava. A caixa chamou a colega do guichê do lado que também revirou o ursão em detalhes sem sucesso. Então, chamaram o gerente. Antônio Carlos arrependeu-se os cabelos. Só foi em frente confortado pela ideia do riso alegre que calculava provocar no filho de três anos.

O riso de Maria da Graça foi lucro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário